*** Republicada aqui com alterações e correções, a matéria abaixo, de minha autoria, foi publicada originalmente na edição de outubro de 2013 do jornal Cândido ***
Retrato de uma época – e da juventude mineira da década de 1940 – e sensível às angústias e anseios juvenis de gerações subsequentes, “O encontro marcado” não envelhece
Quando começou a escrever “O encontro marcado”, romance considerado por muitos leitores, escritores e críticos literários como a obra-prima de Fernando Sabino, o escritor mineiro, nascido em Belo Horizonte em 12 de outubro de 1923, estava com 30 anos de idade. Àquela altura, Fernando já havia publicado quatro obras de ficção: o volume de contos “Os grilos não cantam mais”, de 1941, quando o autor tinha 17 anos; “A marca”, novela publicada em 1944; “A cidade vazia”, volume de crônicas sobre Nova York, onde Fernando morou entre 1944 e 1946; e “A vida real”, reunião de novelas, de 1952.
Não se pretende argumentar, com esse preâmbulo, apenas que “O encontro marcado” é obra de um escritor consolidado. É também um romance escrito por um homem que, apesar de jovem, era muito experiente. No volume sobre Fernando Sabino da série de livros “Perfis do Rio”, Arnaldo Bloch diz que “Quando os 20 anos batem à porta, Fernando se vê atado às responsabilidades de um homem de 30: casado, esperando o primeiro filho num Rio [de Janeiro, para onde se mudara em 1944, antes de partir para NY] inebriante, com dois livros publicados e emprego de responsabilidade: titular de um cartório, presente de Getúlio [Vargas], a quem acaba agradecendo [a contragosto, pois Fernando era antigetulista] pessoalmente o rentável afago oficial”. O motivo do presente: Fernando foi casado com a filha de Benedito Valadares, governador de Minas Gerais entre 1933 a 1945, aliado e amigo de Getúlio.
Aos 30, quando iniciou a escrita de “O encontro marcado”, a situação era completamente diferente. Fernando havia se separado da esposa, tinha abdicado do cartório e estava vivendo sozinho. Sobre esse momento, ele próprio revela, em entrevista à escritora Edla Van Steen (“Viver & Escrever – V.2”, L&PM) que “estava diante de um impasse, meus valores ruíam, o casamento, a família e todas as instituições em que acreditava até então eram postas em xeque. Em vez de partir para o tom confessional, apenas autobiográfico, optei pelo romance, porque deixava em liberdade a imaginação, para poder jogar com a realidade, alterá-la, recriá-la à minha maneira”.
E foi exatamente o que Sabino fez. Utilizando-se deliberadamente de sua própria vida, dando destaque ao período entre o início da década de 1940 até os primeiros três anos da década de 50, o escritor mineiro escreveu o livro que ficou conhecido, desde o seu lançamento, como o romance de uma geração. Para tanto, Sabino seguiu um conselho de Mário de Andrade. Em carta enviada a Fernando em 1945, Mário diz, à guisa de orientação para o romance do pupilo: “não economize nada, gaste tudo, jogue todas as suas cartas na mesa e não blefe. E si o livro não sair bom, diga: perdi. E comece outra partida”. Deu certo.
Atualmente, “O encontro marcado” está em sua 93ª edição, tendo vendido, desde 1977 – ano em que o livro passou a ser editado pelo selo Record – mais de 500 mil exemplares. Desde quando foi publicado, no fim de 1956, pela editora Civilização Brasileira, até sua mudança para a Record, estima-se que o romance tenha vendido cerca de 50 mil exemplares.
É importante destacar que a primeira edição de “O encontro marcado”, de 3 mil exemplares, foi toda vendida em apenas 2 meses, segundo o jornalista José Carlos Oliveira, em texto publicado na edição do Jornal do Brasil de 5 de janeiro de 1958. Sobre o livro, Oliveira declarou que “O encontro…” era “um bom romance de um… existencialista sartriano, de uma alma perdida, empírica, incrédula, cheia de náusea e sem fé de espécie alguma”. Aqui, vale um parêntese: esse último pedaço do comentário de José Carlos Oliveira chega a ser curioso, sabendo-se que Fernando Sabino era um católico convicto.
Sucesso de público
Até dez, quinze anos atrás, qual autor brasileiro poderia vangloriar-se de vender 3 mil exemplares de um romance em dois meses? Atingir esse número num país que, no censo demográfico realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 2000, tinha aproximadamente 170 milhões de habitantes, e cuja população lê, em média, 4 livros por ano (segundo pesquisa do Instituto Pró-Livro divulgada em 2012), é um grande feito. Hoje, com o mercado editorial aquecido devido à ascensão de milhares de brasileiros à classe C – parafraseando uma música do grupo de rock Titãs, as pessoas não querem só comida, mas também diversão e arte – e com o Brasil beirando os 200 milhões de habitantes (de acordo com o último censo, realizado em 2010), já não é um assombro uma tiragem de alguns mil exemplares ser vendida em tão pouco tempo. Mas estamos falando de 1956, quando o país não tinha ainda 70 milhões de habitantes, número que seria alcançado no fim da década de 1950.
Nascido em 1924, o escritor e jornalista Wilson Figueiredo, que foi amigo do quarteto conhecido como “Os quatro mineiros do apocalipse”, grupo formado por Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, acredita que “O encontro marcado” foi tão rapidamente consumido por causa do elemento geracional que a obra carrega: “Naquela época, os amigos faziam um oba-oba dos livros uns dos outros, é verdade, mas ‘O encontro marcado’ foi publicado após o mundo ter passado por um choque muito grande, que foi a Segunda Guerra. O livro fez todo esse sucesso devido à sua qualidade e ao resgate de uma realidade vivida por muitos de nós. Fernando tinha um espírito de repórter, então o livro acaba sendo também um retrato daquela Belo Horizonte dos anos 40”.
Humberto Werneck, escritor e jornalista mineiro, é da geração seguinte (ele nasceu em 1945), e tem uma opinião semelhante à de Figueiredo: “Para mim e para alguns outros jovens escritores da minha geração, o grupo formado por Fernando, Paulo, Otto e Hélio foi uma referência muito forte, e não apenas literária. ‘O encontro marcado’, do Fernando, não era só um texto no qual podíamos aprender truques narrativos, e mesmo, no nosso verdor, imitar escancaradamente. A gente sabia que ali estava a história de quatro talentosos conterrâneos nossos que brilhavam nacionalmente. A certa altura, na adolescência, eu queria ser um deles, num Rio de Janeiro que sempre me fascinou, longe da pasmaceira e do moralismo da vida belo-horizontina de então”.
E por que o romance continua atingindo um público tão grande até hoje? Wilson Figueiredo responde: “O livro sobrevive porque toda juventude tem a mente muito parecida com a dos protagonistas. É aquela coisa da autenticidade que tem o livro, do encanto da juventude, da descoberta da vida que acontece nessa época de nossas vidas. E ele não se esgota, porque é o retrato de uma época, da juventude de uma época”.
Algo parecido disse a escritora e jornalista Eneida Vilas Boas Costa Moraes, que assinou durante mais de vinte anos, apenas com o nome “Eneida”, a coluna “Encontro Matinal”, no jornal carioca “Diário de Notícias” (edição de 20 de dezembro de 1956): “(…) história de um jovem em desesperada busca de si mesmo, como diz a lombada, ‘O encontro marcado’ é também a história de uma geração angustiada, vítima das mais tristes determinantes históricas e sociais, geração vítima de duas grandes guerras, de tremendos choques, de incompreensões, de tantos descalabros”.
Criador x Criatura
Em seu esboço autobiográfico, como costumava se referir ao livro “O tabuleiro de damas”, Fernando Sabino disse que “Num levantamento da minha vida literária, vejo nela que não tenho feito outra coisa senão me revelar, me expor, contar aquilo que vivi, testemunhei, pensei, aconteceu e chegou ao meu conhecimento – sempre através da mais torturante maneira de recriar a realidade”.
É possível, portanto, traçar alguns paralelos entre Eduardo Marciano, protagonista do romance, e Fernando Sabino, seu criador. O primeiro queria ser escritor, assim como o ainda garoto Fernando; ambos tiveram contos premiados antes de chegarem à adolescência; no livro, Marciano namora e se casa com a filha de um ministro, na vida real, como dito acima, Sabino foi casado com a filha de Benedito Valadares; além disso, Marciano e Sabino eram grandes nadadores, e ambos tiveram os casamentos desfeitos.
Mas Fernando não gostava de ver os personagens e acontecimentos de “O encontro marcado” enquadrados nos fatos de sua vida e nas pessoas que o cercavam. Até porque, assim como há semelhanças, há muitas diferenças entre o personagem e seu criador. Eduardo é filho único, Fernando tinha irmãos. Eduardo não teve filhos, já Fernando teve – só com a primeira esposa, foram quatro.
Ainda em “O tabuleiro de damas”, Fernando Sabino explica essa espécie de amálgama que ele fazia com a ficção e a vida real:
“Numa de minhas novelas [“Martíni seco”, publicada no livro “A faca de dois gumes”], um escrivão está jogando damas com um comissário de polícia e pergunta se o tabuleiro é preto com quadrados brancos ou branco com quadrados pretos. O comissário diz que é branco com quadrados pretos. O escrivão, raposa velha da polícia, diz que não.
– Então é preto com quadrados brancos.
E o escrivão:
– Também não. É de outra cor, com quadrados pretos e brancos.
Com isso eu quis sugerir que, por baixo da realidade que se apresenta aos nossos olhos, existe outra que é a verdade.
Esta verdade, de certa maneira, pretendo alcançar com o que escrevo.”
E assim pode ser definido “O encontro marcado”: uma ficção que tem, por baixo dela, algumas verdades. Verdades essas que, no fim das contas, não importam muito. Livro impactante e vigoroso como poucos – e que, sem exagero algum, pode ser considerado o maior romance geracional da literatura brasileira –, “O encontro marcado” é muito maior do que todos esses detalhes.